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30/07/2017

O Condenado Do Condendo (Conto De Terror romântico)

O Condenado do Condendo 


Don Álvaro Guzmán era conhecido em Potosí pela sua crueldade, como o tinham sido antes dele o seu pai e o seu avô. Não que a crueldade fosse uma qualidade rara nos senhores da terra. Mas a crueldade dos Guzmán era, ainda assim, de natureza e dimensões que a faziam sobressair entre a costumeira desumanidade dos fidalgos da região, espanhóis ou criollos de nascimento. A Don Álvaro, por exemplo, viram-no uma vez decepar de um golpe de espada a mão de um criado que ele acusava, sem provas, de lhe ter roubado uma moeda de prata; viram-no, de outra vez, mandar açoitar, até ele desfalecer de dor e perda de sangue, um outro criado que demorou dois minutos a trazer-lhe o jarro de vinho que ele lhe tinha pedido; e viram-no fazer violar pelos seus dois enormes mastins a jovem mucama que ousou defender-se com bofetadas e arranhões quando ele quis abusar dela.
Dona Ignacia, a mulher de Don Álvaro Guzmán, era um anjo, na desajeitada bondade com que tentava compensar as vítimas da malvadez do seu marido, às escondidas dele; e seria também um anjo na aparência, se os maus-tratos de Don Álvaro lhe não tivessem roubado prematuramente a beleza delicada que tivera.
Don Álvaro Guzmán era possante como um touro e nunca ninguém lhe tinha conhecido doença, gripe ou mal de altura que fosse, de modo que, quando ele morreu de repente, foi grande a surpresa – e o alívio. Dona Ignacia não verteu uma única lágrima à morte do marido e nem familiares nem amigos, que lhe conheciam a triste condição, lho levaram a mal. Há quem diga que a viu assistir, da varanda do seu quarto, no escuro e em silêncio, à cena a que se resume este conto e que se deu oito ou nove horas depois do funeral de Don Álvaro; outros sustentam que, pela primeira vez em muitos anos, dormia um sono tão calmo e profundo que o tumulto de que se encheu a fazenda nessa noite não a conseguiu acordar.
O caixão de Don Álvaro tinha sido colocado no jazigo familiar, ao lado da capela da hacienda. Sempre ali tinham sido sepultados os Guzmán, para contento de todos: eles não queriam, por uma soberba que, a par da malvadez, lhes corria na linhagem, partilhar com mais ninguém a sua última morada; e aos restantes potosinos agradava-lhes não terem a conspurcar a terra sagrada do cemitério a carne abominável daquela família de demónios. Devia ser por volta da meia-noite. José, um dos capatazes da fazenda, que voltava a casa depois de ter despejado com uns amigos duas garrafas de singani num botequim das redondezas, ouviu barulhos estranhos vindos de dentro do mausoléu. Primeiro, maldisse a aguardente por lhe pregar partidas daquelas, e logo a ele a quem nunca tinham assustado nem demónios nem fantasmagorias de tipo nenhum. Mas, depois, decidiu confirmar se era mesmo de uma fantasia de bêbedo que se tratava. Aproximou-se da porta do sepulcro. Não havia dúvida, o barulho era real. Ouviu claramente a madeira a ser golpeada e urros abafados, que não duvidou que fossem humanos e que tanto podiam ser de raiva como de desespero.
José correu a acordar os outros trabalhadores da propriedade, um por um. Passava-se algo pouco católico, explicava-lhes ele, no jazigo dos Guzmán. Os peões começaram a sair das suas cabanas, alguns acompanhados das mulheres. Vinham quase todos armados de facas ou varapaus. Alguns traziam tochas na mão, mas depressa se deram conta de que era escusada qualquer iluminação artificial, porque a noite de lua cheia estava tão clara que se podia ler a letra miúda de um missal à luz apenas do luar. À porta do túmulo, os homens e as mulheres confirmaram, ansiosos, a verdade do relato de José. Ouviram o ruído de madeira a estilhaçar-se, seguido de um grito aflitivo de dor. A explicação do assombroso acontecimento começou a circular entre eles primeiro em sussurros amedrontados que se repetiam a espaços e depois num murmúrio constante, de que sobressaíram, a certa altura, as exclamações vigorosos de uma mulher: “Um condenado! Um condenado!”
Todos sabiam o que queriam dizer as palavras de Doña Hortencia: Don Álvaro Guzmán, o malvado, o pecador impenitente, não tinha sido autorizado a gozar do descanso eterno e nem sequer da correcção das suas faltas pelos tormentos do Inferno. Como outros criminosos sanguinários antes dele, tinha sido sentenciado a voltar à Terra e a vaguear para sempre na condição etérea que constituiria, para ele, o mais terrível castigo – era um condenado, uma alma deambulando em pena no mundo impuro da matéria. 
A porta do mausoléu abriu-se e todos se contraíram num espasmo de pavor. Não se ouviu nem um ai. Quando a fantástica figura do condenado surgiu no limiar do sepulcro, porém, nem os mais valentes deixaram de recuar alguns passos atabalhoados entre exclamações de terror. A aparição excedia o que de medonho pudesse conceber a mais doentia imaginação. Se era de Don Álvaro o fantasma, não tinha muitas parecenças com o Don Álvaro que tinham conhecido em vida: a aventesma tinha a cabeça e a cara feitas numa chaga pegada, bocados de cabelo arrancados, as roupas em farrapos e completamente ensanguentadas; e as mãos, que trazia levantadas em frente ao rosto num gesto de ameaça, viam-se-lhe descarnadas em toda a extensão das falanges, pingando grossas bagas de sangue.
“Não é uma alma penada”, gritou alguém, “é um demónio da corte de Satanás!”
“Demónio ou fantasma, que importa?”, respondeu Doña Hortencia com firmeza, “Ides venerá-lo? Ou fugir dele? Dai-lhe antes a provar golpes de pau e cutelo, a ver o que diz o estafermo do outro mundo à digna recepção que o espera neste!”
O grupo de peones deixou convencer-se pela fúria decidida da mulher. Ao princípio, com alguma hesitação e depois cada vez mais afoitos, avançaram para o condenado e cercaram-no. Quando as primeiras pancadas o atingiram, o fantasma contorceu-se sem gritar. Quando alguém mais atrevido se aproximou dele o suficiente para lhe abrir o braço com uma facada, o monstro soltou um gemido arrastado e gutural que não era humano com certeza, titubeou e caiu ao chão, para se levantar outra vez logo de seguida.
Ouviu-se de repente um grito de José, a quem a cena de horror tinha desembriagado de todo:
“Deixai o homem, por amor de Deus! Será que sois tão cegos que não vedes que é Don Álvaro a miserável criatura?”
“Don Álvaro? Que Don Álvaro, este maldito avejão!?”, gritou-lhe Doña Hortencia, num esgar de raiva. “Este ser não é deste mundo e nem de mundo nenhum, que o Diabo não o quis receber na sua maldita morada e mandou-o de volta à Terra para nos continuar a atormentar!”
José entendeu então finalmente o que todos os outros tinham já há muito entendido: que a descrição que Hortência acabava de fazer se podia aplicar tanto a uma alma penada com a uma criatura de carne e osso, bem viva ainda mas que em breve deixaria de o ser. Só não compreendia por que demoníaco prodígio o tirano tinha conseguido adiar o julgamento divino. Mas nem isso o tinha conseguido salvar de ser condenado pelos seus juízes humanos.

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